sexta-feira, 30 de março de 2007

A Rua dos dançarinos felizes

Existe um quarteirão da Rua dos Goitacazes onde predomina a diversidade. É um trecho pequeno que não está na Zona Sul, nem consta dos itinerários dos abastados, mas que guarda em suas tabuletas, construções e personagens uma certa poesia, um sonho, talvez, de que a igualdade, exatamente ali, fez a sua morada. Aos sábados, quando caem as tardes, esse pedaço de rua torna-se palco do “Quarteirão do Soul”. Um encontro de dançarinos da black music que, pelo menos momentaneamente, ofusca as diferenças de credo, hierarquia social e raça.

Poucas vezes, quem sabe, a visão da diversidade esteve tão plena, misturada harmoniosamente. Confira, agora, uma amostra de singular alegria fraterna:

Vídeo com cenas do “Quarteirão do Soul”

O “Quarteirão do Soul” é embalado pelas músicas de James Brown. Dançarinos de sapato bicolor e, às vezes, com ternos alinhados, misturam-se aos transeuntes e espectadores, exibindo performances inspiradas na década de 1970. Uma imagem que parece saída do túnel do tempo. Há dançarinos com cabelo black-power, deslizando sobre o asfalto, como se a superfície fosse feita de gelo. Junto deles, dançam personagens vindos de qualquer lugar: grupos de jovens, figuras saudosas daquela década passada, o andarilho e sua cachorrinha de pelagem negra, o catador de material reciclável que venera James Brown...

Aos sábados, no quarteirão da Rua dos Goitacazes, todas as tribos se misturam. E até o tímido rapaz de 20 anos, que gosta de reggae, interrompe seu caminho para ver a “dança dos extrovertidos”. O nome dele é Vinícius de Jesus e, embora não tenha coragem, diz que gostaria de estar no meio daquele povo, dançando. Os seus olhos acompanham as danças e se estendem além, captando os sorrisos e a diversidade das gerações. A música ecoa, faz arregalar os olhinhos do bebê que, no colo da mãe, não entende o que antes nunca vira. Vinícius gosta da cena e das cores irmanadas: “Acho que todo o mundo deveria ser assim”, comenta.

O quarteirão compõe-se de botecos, livrarias, hotel, escolas e casa de massagem. E tem a alma que lhe dão os personagens de dentro e de fora dessas construções. Ele é efervescente, mas também discreto, com seus livreiros concentrados em histórias de ficção.

A casa de massagem tem sempre a porta aberta, depois da qual uma escada espiralada apresenta-se como único caminho. Lá em cima, da janela, a dona da casa e suas meninas observam o encontro dos dançarinos da black music. Ela é uma discreta senhora de 60 anos que se apresenta com o nome de “Tia” e não costuma andar pelo quarteirão. Ainda assim, conhece quase todos os personagens e sabe há quanto tempo eles estão ali. A sua janela tem vista privilegiada. Abre-se logo depois do fim da escada, ampla, iluminada, voltada para as histórias que se constroem naquele trecho da rua.

“Tia” veio de Esmeraldas, no interior de Minas, há 50 anos. Diz que sente saudades do tempo da infância, na fazenda em que morava, embora lá não tivesse luz, nem televisão. Quando fala do passado, é como se falasse de uma outra vida que não a dela. A menina esmeraldense brilha intermitentemente na neblina dos anos e aparece, de vez em quando, no olhar distante.

Debaixo da janela, James Brown ainda ecoa. Está nos LPs que tocam nas pick ups de quem comanda o som no “Quarteirão do Soul”. E as pessoas continuam dançando e sorrindo, quem sabe apagando da memória as suas dores. Algumas se esforçam para aprender os passos, mas há aquelas que dançam a seu modo, apenas vivendo o momento. Entre os mais animados, pode-se ver um andarilho anônimo. Do seu corpo pendem cornetas que ele toca esporadicamente. Mas a sua fiel seguidora, a cachorrinha vira-lata, parece hesitante no meio dos dançarinos, sem entender o motivo da alegria contagiante do seu dono.

Edna de Souza, a gari de 47 anos que transita entre o público do “Quarteirão”, varrendo constantemente, diz que aquela música foi do seu tempo. Os anos que se passaram entre a década de 1970, quando freqüentava os bailes da soul music na periferia, e a primeira década de 2000, roubaram-lhe a descontração. Ela afirma que já não gosta daquela música. No entanto, contraditoriamente, apressa-se em chegar junto à roda: “Para mim é bom. Talvez a gente está pensativa e até se esquece dos problemas”, afirma, dividida entre uma Edna do ontem e do agora.

Lá em cima, da sua janela, a “Tia” observa o encontro da diversidade. Suas últimas palavras também ecoam pelo quarteirão:
- Às vezes, na sua casa, você tem um monte de janelas e nenhuma lhe agrada. Mas esta tem um astral muito bom! Olhando daqui de cima, acho que todo mundo nesse quarteirão é feliz...
Ana Carolina Lima; Gabriel Senna; Leandro Maia; Maria Cristina Rielle; Maria Silva e Silvério; Tatiana Perry

6 comentários:

Unknown disse...

A pauta é muito boa e o desenvolvimento da matéria foi muito bom. Especialmente os personagens destacados e os vídeos. Acho que o ensaio fotográfico poderia conter legendas, isso o tornaria mais jornalístico.
Geane

Thiago Nogueira disse...

Como é que a grande imprensa ignora esse quarteirão no centro da cidade? Nunca vi nada disso na mídia... Muito bom o vídeo (Thiago Nogueira)

8o JN 1/2007 disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
8o JN 1/2007 disse...

Adorei! O vídeo é mto legal tbm, mas acho que é um pouco longo. É impressionante como a cidade é rica em diversidade cultural, e passa despercebido pela grande mídia, bem como pelos nossos olhares desatentos. Parabéns!
Andréa

Sidney Gomes disse...

Além de eu nunca ter visto nada disso na grande imprensa, eu realmente não fazia a menor idéia da existência do quarteirão. É realmente um refresco com o melhor da música negra, a lembrança de James Brown é um bálsamo num momento em que a música brasileira que vem da periferia é um atentado contra o bom gosto e a inteligência.

8o JN 1/2007 disse...

Mto bom! Belos sapatos plataforma. Acho que faltou alguns hiperlinks, mas nada que comprometa a materia. Tao de parabens.

Fabio Correa